Café Beatnik

Esperança Decepcionada

Posted in Artes Visuais, Filosofia, Literatura by cafebeatnik on março 11, 2024

De fato, o que se faz com os mortos é rogar o que os antigos judeus consideravam a pior das pragas: não se lembrar deles. Em face dos mortos os homens desabafam o desespero de não serem mais capazes de se lembrarem de si próprios (ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 179).

Arnold BocklinSelf-Portrait with Fiddling Death,1872

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message ‘He is Dead’.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

(W. H. AUDEN. Funeral Blues. Abril de 1936)

****

Só a perfeita conscientização do horror que temos pelo aniquilamento estabelece um verdadeiro relacionamento com os mortos: a unidade com eles. Pois, como eles, somos vítimas das mesmas condições e da mesma esperança decepcionada (ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 178).

A partir de E.G.

Paciência

Posted in Artes Visuais, Literatura by cafebeatnik on janeiro 14, 2024

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Wolfgang Diederich, ilustração para Der Asra

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Todos os dias, ao anoitecer,
a bela filha do sultão
passeava perto da fonte onde as águas claras respingavam

Todos os dias, ao anoitecer,
o jovem escravo
ficava junto à fonte onde as águas claras respingavam

E a cada dia ele ficava mais pálido!

Uma noite, a princesa foi até ele
E falou apressadamente:
“Gostaria de saber seu nome, sua terra natal e sua tribo”

E o escravo respondeu:
“Meu nome é Mohamet, sou do Iêmen
E minha tribo são os Asra,
que morrem quando amam…”

(Der Asra, de Heinrich Heine, a partir do filme Afire, de Christian Petzold).

Logo

Posted in Artes Visuais, Cinema, Literatura by cafebeatnik on agosto 14, 2023

Karl_Brullov_-_The_Last_Day_of_Pompeii_-_Google_Art_Project

Karl Bryullov, The Last Day of Pompeii, 1830-1833

Moscas como pensamentos obscuros
não me dão sossego o dia inteiro.
Picam, zumbem e giram sobre minha pobre cabeça.
Você tira uma da face,
outra pousa no seu olho.
Não há onde se esconder,
esse bando odioso está em todo lugar.
O livro cai da mão,
a conversa cessa, pálida.

Se a noite corresse!
Se a noite passasse logo!

Moscas como pensamentos obscuros
não me dão sossego o dia inteiro.
Picam, zumbem e giram sobre minha pobre cabeça.
Você tira uma da face,
outra pousa no seu olho.

Tudo lembra a vida em vão vivida entre sonhos.
Você quer esquecer,
parar de amar,
mas segue amando
sempre mais dolorido e forte.

Se a noite eterna viesse logo…

.
(A Esposa de Tchaikovsky, Kirill Serebrennikov).

Livre dentro de si Mesmo

Posted in Artes Visuais, Literatura by cafebeatnik on abril 19, 2023

2. Fotografia da exposição Silêncio - Crédito Octavio Cardoso

Octavio Cardoso, série Silêncio

Em Deus acreditava. Era aquela figura da estampa no oratório que seu pai tinha. Não sabia bem se era Cristo ou mesmo Deus. Nunca perguntara a seu pai nem à D. Amélia. Uma figura sentada na ponta do rochedo numa noite de treva e uma grande luz caindo sobre ele. A estampa fazia uma confusão nos olhos e no pensamento de Alfredo. Não era parecido com o Cristo da Semana Santa. Aquilo só podia ser Deus mesmo. Mas os pés eram diferentes, tinham muitos dedos, as mãos também e em torno, a noite carregada de treva e a luz descendo num raio sobre a cabeça do Pai do Céu e da Terra. Para que estivesse ali naquela atitude, num rochedo, no meio daquela solidão, só podia ser o Senhor do Mundo. Aquilo nunca que era o Senhor Morto que via na Sexta-Feira da Paixão na igreja. Era um Ser de muitos dedos nos pés e muitos dedos nas mãos e cheio daquele clarão que não era dia nem aurora, nem luar nem uma luz que estivesse acostumado a ver em Cachoeira. Deus lhe dava sobretudo era medo, uma perseguição na consciência. Saber que havia um Todo-Poderoso escutando os seus pensamentos, vendo e medindo todos os seus atos, tomando nota no seu grande livro, de todas aquelas coisas perigosas e secretas que já começava a fazer, era, de qualquer modo, doloroso e intolerável. Irremediável em qualquer situação. Deus era inevitável, a realidade terrível. Mas havia o Pai do Céu de Lucíola, o Deus de D. Amélia e o Supremo Criador do Major Alberto. Três deuses diferentes que complicavam cada vez mais a coisa. Se conseguisse esconder-se do Pai do Céu de Lucíola, não escapava do Deus de D. Amélia e se deste escapulisse caía direitinho nas mãos do Supremo Criador do Major Alberto. Havia também uma coisa terrível para Alfredo: o Juízo Final. Sua bolinha não podia criar um Deus como ele pensasse, feito à sua imagem e semelhança? A bolinha podia fazer de conta que todos os deuses ficassem abolidos e Alfredo se encontrava livre dentro de si mesmo. Lucíola lhe transmitira o terror, Major Alberto o receio, D. Amélia lhe ensinara que esse Deus socorria gente nas horas de frio e febre e outros perigos. Enfim uma complicação de muito Deus na sua consciência. Não era um só Todo-Poderoso que tinha de saber dos seus segredos tão vergonhosos, que havia de saber que ele ia tirar os cinco mil-réis de dentro do livro O Primo Basílio e comprar uma camisa de futebol. Diferentes, sim, mas acabavam levando ele para aquela estampa onde um Ser estranho e solitário era o Senhor da treva e da luz (JURANDIR, Dalcídio. Chove nos Campos de Cachoeira. Bragança: Pará.grafo Editora, 2019, pp. 244-245).

Ascensão

Posted in Artes Visuais, Literatura, Quadrinhos by cafebeatnik on março 21, 2023

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Alejandro Jodorowsky & José Ladrönn, Incal Final

Há uma colina em Nicósia para onde aves de todos os tipos vão em busca de alimento. É coberta de arbustos crescidos, urtiga e touceiras de urze. No meio dessa vegetação densa há um velho poço com uma polia que range ao menor movimento e um balde de metal amarrado a uma corda, puída e coberta de musgo pela falta de uso. No fundo, a escuridão é total, e o frio, congelante, mesmo quando o sol abrasador do meio dia incide diretamente lá do alto. O poço é uma boca faminta, à espera da próxima refeição. Devora cada raio de luz, cada rastro de calor, retendo cada partícula de poeira na comprida garganta de pedra.

Se um dia você estiver na área e, movido pela curiosidade ou pelo instinto, se inclinar sobre a borda e espiar lá dentro, esperando que os olhos se acostumem, talvez veja um lampejo no fundo, como o cintilar fugaz das escamas de um peixe antes de desaparecer na água. Mas não se deixe enganar. Não há peixes lá embaixo. Nem cobras. Nem escorpiões. Não há aranhas penduradas em fios de seda. O lampejo não vem de um ser vivo, mas de um antigo relógio de bolso – ouro dezoito quilates revestido de madrepérola, com os versos de um poema gravados:

Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar sua viagem
(do poema Ítaca, de Konstantínos Kaváfis).

E na parte de trás, duas letras, ou, mais precisamente, a mesma letra escrita duas vezes:

Y & Y

O poço tem dez metros de profundidade e um metro e vinte de largura. É construído com silhares de suave curvatura que descem em trajetórias horizontais idênticas até as águas silenciosas e cheirando a mofo lá embaixo. Presos nu fundo estão dois homens. Os proprietários de uma popular taberna. Ambos de corpo magro e estatura mediana, com orelhas grandes e salientes, sobre as quais costumavam fazer piada. Ambos nascidos e criados naquela ilha e na casa dos quarenta anos, os dois foram sequestrados, espancados e mortos. Foram atirados no poço depois de serem acorrentados um ao outro e a uma lata de azeite de três litros cheia de concreto, para garantir que nunca mais voltariam à superfície. O relógio de bolso que um deles usava no dia do sequestro parou faltando exatamente oito minutos para a meia noite.

O tempo é um pássaro canoro e, como qualquer pássaro canoro, pode ser capturado. Pode ser mantido prisioneiro em uma gaiola por muito mais tempo do que você é capaz de imaginar. Mas o tempo não pode ser detido eternamente.

Nenhum cativeiro dura para sempre.

Um dia a água vai enferrujar o metal, as correntes vão se partir, e o rígido coração do concreto vai amolecer, como tende a acontecer até aos corações mais implacáveis com o passar dos anos. Só então os dois cadáveres, finalmente livres, vão flutuar em direção à brecha de céu lá no alto, brilhando à luz refratada do sol; vão ascender em direção ao azul idílico, primeiro devagar, depois em ritmo rápido e frenético, como apanhadores de pérolas em busca de ar.

Mais cedo ou mais tarde, aquele poço velho e em ruínas naquela linda e solitária ilha nos confins do mar Mediterrâneo vai desabar sobre si mesmo, e seu segredo virá à tona, como está fadado a acontecer a todos os segredos (SHAFAK, Elif. A Ilha das Árvores Perdidas. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2022, pp. 14-15).

Sopro

Posted in Artes Visuais, Literatura by cafebeatnik on janeiro 26, 2023

Onde habitam os seres antes de começarem a existir, onde dormem suas marcas, suas possibilidades? E que instante-zero é esse, essa linha que separa o sim e o não, a existência e o nada, um estrondo silencioso? Um clarão?, o exato segundo ou talvez o exato milionésimo de segundo em que um amontoado de células recebe esse estranho sopro de vida? (SAAVEDRA, Carola. Com Armas Sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 173).

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Sandro Botticelli, A Primavera (detalhe), 1477-1482

O silêncio impõe inesperados desconfortos a quem o adota (GURNAH, Abdulrazak. À Beira-Mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 27).

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[…] a filha não entendia que a vida toda era toda uma vida e que se não sentisse falta disso não sobraria mais nada para sentir falta, e que a tristeza era melhor do que coisa alguma […] (SAAVEDRA, Carola. Com Armas Sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 244).

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Não estou dizendo que o passado não importa, saber o que aconteceu nos faz entender quem somos e como nos tornamos o que somos, e que narrativas contamos sobre tudo isso (GURNAH, Abdulrazak. À Beira-Mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 290).

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[…] e se o início fosse uma palavra?, o surgimento do mundo a partir de uma única palavra, alguém pronuncia “mundo” e o outro que ouve “mundo” e ambos comungam desse significado, e se envolvem nele, e o vestem como quem veste uma capa que recobre o vazio, o início do mundo apenas isso, uma palavra compartilhada?, […] (SAAVEDRA, Carola. Com Armas Sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 254).

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[…] e veio-lhe então um pensamento mais esquisito ainda, e se o início era só uma palavra, o que garantia que ela não perderia, de um momento ao outro, o seu significado?, quando aqueles que a compreendiam deixassem de existir, restando apenas um idioma estrangeiro numa cápsula à deriva, hieróglifos, palimpsestos, […] (SAAVEDRA, Carola. Com Armas Sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2022: 254-255).

Posição

Posted in Artes Visuais, Literatura by cafebeatnik on dezembro 18, 2022

Mistério por não atravessar
O rio da eternidade
Em sua embarcação!

Diante de minha não travessia,
As horas permanecem
(Caronte, JF).

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Roberto Gutiérrez Currás, Caronte, 2021

“A quem mais amas, homem enigmático, dize-me: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?”
“Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.”
“Seus amigos?”
“Agora você faz uso de uma palavra cujo sentido até hoje permanece desconhecido para mim.”
“Seu país?”
“Não sei nem em que latitude ele se situa.”
“A beleza?”
“Ficaria feliz de amá-la, deusa e imortal.”
“O ouro?”
“Eu o odeio tanto quanto você odeia Deus.”
“Ei! o que você ama então, estrangeiro extraordinário?”
“Eu amo as nuvens… as nuvens que passam… lá… lá… as maravilhosas nuvens!”

(O Spleen de Paris I, Charles Baudelaire).

Mashup

Posted in Filosofia, Literatura, Música by cafebeatnik on novembro 24, 2022

Escrever – que se trate de Ficções ou de crônicas, de poemas ou de ensaios documentais – consistiria então, sob esse ângulo, em formar o atlas ou a cartografia dépaysante, estranha, de nossas experiências incomensuráveis (o que é muito diferente de fazer a narrativa ou o catálogo de nossas experiências mensuráveis) (DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou o Gaio Saber Inquieto. O Olho da História, III. Belo Horizonte: UFMG, 2018: 84).

ola ray

John Lennon se tornou uma superestrela no Colégio São Paulo lá pelos meados da década de 1990. Para surpresa de muitas e de muitos, ele não só não possuía traços, como não conhecia canções, nem demonstrava interesse pela carreira dos Beatles. Seu êxito para com toda a juventude daquele colégio de freiras veio mesmo em uma outra via, Lennon personificava Michael Jackson sem excessos.

Eu bem lembro de quando escutava Billie Jean e logo imaginava os passos e a naturalidade de meu amigo. Nós até pedíamos para que ele fizesse o famoso Moonwalker enquanto tocávamos em nosso mini system Jealous Guy. Porém, John Lennon se mostrava irredutível, não aceitava tamanhas traições. Ele me contava que os seus pais ficavam igualmente furiosos com este posicionamento seu, pois nem um refrão da banda britânica saía de seus lábios.

Por conta desta consciência sua, seu investimento nas coreografias de Jackson se manteve sem trégua. Em todo horário de recreio, lá eu via John Lennon dançando soul, black music e pop norte-americanos. E ele vinha todo paramentado: jaqueta de couro vermelha, calças vermelhas, um par de mocassins pretos e as habituais meias brancas.

E a plateia? Ora, um grupo numeroso de adolescentes homens e mulheres estáticas e com olhares fixos na precisão dos seus movimentos. Ao término de cada intervalo, um estrondo de palmas, misto de beatlemania ao som de Thriller.

Quando revi John Lennon, descobri que aprendera a tocar violão e, então, fazia apresentações acústicas de Bob Dylan em um bar na Cidade Velha de Belém. Segundo seu relato, não cedera aos desejos dos pais, ainda, de fazer covers do artista inspiração para seu nome. Talvez, depois dos 40 anos, mudasse de ideia. Chegaria no seu prazo, acreditava, a oportunidade para viver os anos que não foram vividos por seu xará (Mashup, JF).

Legibilidade (?)

Posted in Artes Visuais, Filosofia, Literatura by cafebeatnik on outubro 28, 2022

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Vincent Van Gogh, Girassóis, 1889

Cada situação tinha suas crueldades específicas, suas impossibilidades, suas decisões a tomar. Um sargento do exército soviético, por exemplo, evocou esse tipo de situação em Auschwitz: “Em um fim de tarde, alguns que continuavam a chorar nos abraçaram, murmurando algumas palavras em línguas que não compreendíamos. Eles queriam falar, começavam a contar. Mas nós não tínhamos mais tempo. A noite caía. Devíamos partir (DIDI-HUBERMAN, Georges. Desmontagens do Tempo Sofrido. O Olho da História II. Belo Horizonte: UFMG, 2018: 29).

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[…] a constelação nos diz da profunda complexidade, da espessura, por assim dizer, da sobredeterminação desse fenômeno, como se fosse um fóssil em movimento, um fóssil feito de luz que passa, como o fotograma de um filme desmedido (DIDI-HUBERMAN, Georges. Desmontagens do Tempo Sofrido. O Olho da História II. Belo Horizonte: UFMG, 2018: 22).

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E ele se recordava. Não porque se percebesse de alguma crença, mas por se assombrar com o que não se teria sido pensado. Naquela tarde, defronte a um dos Girassóis, de Van Gogh, amargurou certo tipo de leitura: o desabamento da esperança, da resistência, da persistência, da fé.

O que fazer com estes atributos, tantas vezes tratados por absolutos? (Os Girassóis e a Igreja, JF).

Invictus

Posted in Artes Visuais, Filosofia, Literatura by cafebeatnik on outubro 10, 2022

street lamp

Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate,
I am the captain of my soul.

(Invictus, William Ernest Henley, escrito em 1875 e publicado inicialmente em 1888).

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[…] Sócrates os levara a reconhecer que é da competência do mesmo homem escrever comédias e tragédias, e que o poeta trágico de verdade também será poeta cômico (PLATÃO. O Banquete. Belém: UFPA, 2011: 201).

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10 de outubro de 2022, 42.